Hospital Miguel Bombarda - uma crónica
Passo a citar a crónica publicada na Visão de 7 de outubro, escrita por António Lobo Antunes.
"São quase one horas da noite. A fixidez das lâmpada lá fora, tão quietas quanto as árvores. Normalmente palpitam, sobem, descem, parecem mover-se. Alguns raros automóveis na auto-estrada ou lá o que é aquilo. E eu sentado, a escrever. Não sei o quê. Escrevo. A caneta há-de encontrar o seu caminho.
Hoje almocei no hospital em que trabalhava e onde conheço cada vez menos pessoas. Sempre achei, desde o primeiro dia, era eu um internozito chegado de África, que em lugar de hospital me haviam colocado num chiqueiro de merda. Mas quem se rala? São doentes e são pobres. lá andam eles a penar, entupidos de medicamentos até à goela, de expressões vazias. Calmos, claro, mas no sentido em que os legumes são calmos. tive um director para quem a calma era essencial: punha na papeleta calmo, ordenado, o que, para ele, era sinónimo de estar bem.
O director, em contrapartida, que não era calmo nem ordenado, não tomava medicamento nenhum. Andava atrás das enfermeiras como um cachorro aos sobejos, punha amão adiante da boca para me cochichar: - tope-me aquela.
Empurrava-as contra a marquesa, na sala de pensos. Uma ocasião perguntei-lhe - Calmo e ordenado não será o contrário de estar vivo?
e ele a engrossar à secretária - Olhe que lhe instauro um processo disciplinar
e instaurou. Que extraordinário verbo, instaurar. Instauro-lhe um processo disciplinar. Nomearam um inquiridor que me chamou ao gabinete da Administração. O inquiridor era o clínico geral do chiqueiro. Um único clínico geral para centenas de doentes. Chegava ao meio-dia. Saía às onze. Durante os anos de internato instauraram-me (santo verbo) três processos disciplinares por insubordinação. Não: dois por insubordinação, um terceiro por me apresentar ao serviço (outra bela expressão, apresentar-se ao serviço) vestido com o uniforme dos doentes. Porque os doentes eram obrigados a um uniforme, o que me revoltava. E rapavam-lhes a cabeça. E eram vistos quando o rei faz anos. Mas andavam calmos e ordenados. Quase todos. Lembro-me de um rapaz que se regou de petróleo e se chegou um fósforo. De vários que se suicidaram. Do psicanalista que dava electrochoques em série. Do grupanalista (grupanalista: passei oito anos ness léria e ainda estou para saber o que é) que, na urgência, aplicava doses de injectáveis que me aterravam.
Segredava com doçura: - E agora apanha um lorenim por cima e fica confuso mas calmo.
E, de facto, a vítima babava-se, resmungando incoerências. Pelo menos não maçava ninguém. A propósito de uniforme lembrei-me agora que há uma fotografia do poeta Ângelo de Lima com ele e de cabecinha rapada. Compôs uma porção de versos no hospital, alguns excelentes.
Desenhava. O meu pai recordava-se de ver os seus desenos e os seus escritos a ganharem bolor numa espécie de cave. Não interessava um corno: asneiras de um maluquinho qualquer. No segundo ano do internato ganhei o prémio da Sociedade de Neurologia e Psiquiatria com um trabalho sobre ele: devo ter sido o único concorrente. Na cerimónia de entrega do prémio, o director, subitamente amável - É uma pena você ser tão impulsivo
eu que não era impulsivo nem meia.
Em vinte e sete meses de guerra uma pessoa aprende, que mais não seja a dominar-se. Quem não se dominava morria. Quem se dominava morria menos. Eu só morri um bocado.
Não h+a uma ponta de exagero no que disse aqui. Fiz um livro inteiro sobre isto, chamado Conhecimento do Inferno, e o resultado foi um dos meus chefes vir de pistola ao hospital para me ferrar um tiro. Não estava calmo nem ordenado e não o internaram. Quando se cruzava comigo começava a correr. Nunca vi a pistola, eu que me lembrava bem desses instrumentos. Fartei-me de os montar e desmontar. De os olear. De lhes carregar nos gatilhos.
Onze horas da noite. Se calhar meia-noite. fixidez das lâmpadas lá fora, tão quietas quanto as árvores. Normalmente palpitam, sobem, descem, parecem mover-se. Tenho vergonha de ter trabalhado no hospital. De ter sido médico ali. De me ter calado tantas vezes. Precisava de ganhar a vidinha, não é? Todos precisamos de ganhar a vidinha, não é? Uma rapariga estrangulou-se com a fita do cabelo, e o assistente para mim - Isto fica entre nós.
Lâmpadas tão quietas quanto as árvores. Eu sentado a escrever. Não sei o quê. Escrevo. A caneta há-de encontrar o seu caminho. Encontrou: no bico do aparo vejo um rapaz a regar-se de petróleo, a chegar-se a um fósforo. Mas isso, é evidente, fica aqui entre nós.
4 Comments:
Duro.
A Psiquiatria é a especialidade que mais me assusta, também pelo imaginário que se construiu/constrói à sua volta.
Pior que uma pessoa estar "doente", é estar e não ser capaz de julgamento para se aperceber disso. Disso e de grande parte da realidade que a envolve.
E como se leu aqui, ser um alvo ainda mais fácil de abusos deste tipo.
Um texto muito interessante.
Descobri hoje este blog, traz-me algumas saudades de quando era como vocês, projecto de médico, também na fml.
Já agora, convido-vos a passar pelo meu blog!
http://desabafosdeummedico.blogspot.com/
intiresno muito, obrigado
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